22.6.09 | Autor: Maria Augusta
Entrar em uma biblioteca e imaginar todo o saber que está encerrado naqueles volumes, é quase um ato religioso, não é mesmo? Apesar de que atualmente todo o conteudo dos livros está migrando para suportes eletrônicos (o que é bom pois terão uma acessibilidade mais ampla), ainda acho que um belo compêndio com uma capa bem trabalhada tem um charme enorme...Principalmente aqueles bem antigos, que atravessaram séculos para nos trazer sua mensagem (será que os suportes eletrônicos também vão durar tanto tempo?) Um dia ainda vou pesquisar sobre a Biblioteca de Alexandria, que foi queimada por Julio César e sobre o que ela continha...Mas o assunto de hoje não é o conteudo, mas a embalagem, pois em muitos casos estes templos do saber se encontram instalados em prédios magníficos, com uma decoração suntuosa. Alguns deles foram fotografados por Ahmet Ertug, e o resultado se encontra em exposição na Biblioteca Nacional da França, em Paris. Então, psssiu, silêncio, vamos entrar nas bibliotecas...



Update (23/06/2009)

A querida Sonia, a quem agradeço, nos trouxe uma informação preciosa em seu comentário :

"Voltei Maria Augusta, para passar um link para você - já que o tema hoje é livros - da entrevista com José Mindlin, e seu conjunto primoroso de 30.000 livros raros. As fotos foram tiradas pelo meu cunhado, Cristiano Mascaro. Link AQUI"

O artigo é muito interessante, recomendo sua leitura e dele trouxe estes fotos da biblioteca de José Mindlin :

Photobucket
Fotos de Cristiano Mascaro


Ela também nos dá uma dica de leitura, a respeito de um dos assuntos abordados neste post :

"Li um livro bem interessante, chamado A Biblioteca Desaparecida, Histórias da Biblioteca de Alexandria, de autoria do italiano Luciano Canfora."


Update 2 (24/06/2009)


Também sobre o acervo de José Mindlin veja o excelente post do Kovacs "No Mundo dos Livros - José Mindlin."

Update 3 (24/06/2009)

O Entremares deixou nos comentários este magnífico conto sobre o sentimento que as bibliotecas despertam :

"Existe algum local mais tranquilo que uma biblioteca ?
Bem… se excluirmos as igrejas vazias ou os mosteiros abandonados, é claro.
Pois… não, claro que não existe.
Apesar de que, naquele belo sábado de manhã, a excepção iria confirmar a regra de que as bibliotecas são locais silenciosos, de estudo e – porque não? – até inspiração. E isto tudo porque um filho da terra, o conhecidíssimo autor de romances históricos Luís Vilas Novas iria ali lançar a sua última obra, com direito a sessão de autógrafos, palestra e cocktail promovido pela sociedade portuguesa de autores. Enfim, uma cerimónia a que a pequena vila do Alandroal, escondida no Alentejo seco e quente de Agosto, não estava propriamente habituada.
Agosto, no Alentejo sempre foi sinónimo de três coisas; Calor – sempre muito… e muito seco, céu azul vivo - daquele tom que fere a vista de luz, reflectido na cal das paredes - e finalmente… as ruas desertas, na sagrada interrupção da sesta.
O Alandroal podia passar despercebido no anonimato das urbes turísticas, sem monumentos de primeira grandeza ou eventos de abrangência nacional. Mas, naquele sábado de Maio de 2009, um ilustre filho da terra decidira regressar a casa e honrar as suas origens, através daquele pequeno gesto simbólico – lançar um livro.
Luís Vilas Novas, o autor, era uma daqueles característicos contadores de histórias, como tantos outros alentejanos, que havia trocado as tertúlias de café e os jogos de dominó pelas artes da escrita, enveredando por uma carreira de sucesso que já contava com mais de doze títulos, versando os romances históricos – a sua área predilecta.
“ A cruzada secreta “ era precisamente o seu último romance; uma história de aventura e mistério, retratando a odisseia de três cavaleiros cruzados, numa missão secreta a pedido de Roma, para tentar sequestrar Saladino, o todo-poderoso sultão do Egipto, nas vésperas da queda de Jerusalém.
A biblioteca da vila, apesar de pequena, continuava acolhedora, como ele ainda recordava. Ainda pouco passava das dez da manhã quando o escritor voltou a percorrer o corredor branco, o pórtico de pedra que separava a recepção dos arquivos, rumo ao salão de leitura. A cerimónia só teria inicio ao meio-dia e isso dava-lhe tempo suficiente para poder, tranquilamente… matar saudades.
O salão de leitura não mudara nada, ao longo de todos aqueles anos – as mesmas estantes de madeira, com portas de vidro, a escada ao fundo para aceder ao arquivo antigo, propositadamente dissimulado nas estantes mais altas, as mesmas mesas de carvalho escuro, já com evidentes sinais da passagem dos anos… mas mesmo assim, ainda sedutoras.
Os olhos fixaram-se numa mesa em especial, junto de uma das janelas. Aquele era o “seu” lugar, o seu recanto de estimação – ali vivera as primeiras aventuras, saboreando as páginas com sabor a piratas, a contrabandistas, a heróis da revolução, a romances de cavalaria, a aventuras no espaço…

- O senhor doutor está matando saudades?

Voltou-se, sobressaltado. Aquela voz…

- Dona Palmira ? … É mesmo a senhora ?

Abraçaram-se efusivamente.

A biblioteca não seria a mesma … sem a dona Palmira, a eterna funcionária que ainda agora, já com a velhice bem estampada no rosto, resistia ao avançar dos anos e aparentemente, ainda tomava conta dos destinos de todos aqueles livros.

- O senhor doutor veio confirmar se já está tudo pronto ? – quis saber, o mesmo sorriso meigo que ele ainda recordava.


- Oh, dona Palmira, por favor… não me chame isso, que até me sinto mal… para si, eu serei sempre o Luís… só Luís. Deixe lá o doutor dentro da gaveta, por favor…


Ela aquiesceu, agradecida.


- Saudades ? – e ao mesmo tempo, ia apontando para a mesa onde o escritor estivera sentado e de onde se levantara em sobressalto.

Ele acenou em silêncio, numa concordância que dispensava palavras.

Por momentos, assim permaneceram, os olhares perdidos em tempos passados, recordando as colecções de instantes que, sem o percebermos, vão moldando a maneira como vemos as coisas…

- Tenho uma surpresa para si… - lá avançou a dona Palmira, após um longo silêncio – e queria dar-lha antes… de começar toda a confusão da cerimónia…

- Uma surpresa ? Ora essa…

Ela afastou-se, dirigindo-se até à mesa cinzenta metálica, onde ainda guardava as fichas de cartão com a identificação dos livros, dos armários, das prateleiras. É claro que também ali existia o computador e que – um pouco a custo, é certo – lá aprendera a trabalhar com o programa que geria a biblioteca. Mas não havia computador que substituísse o prazer de manusear com as mãos as pequenas cartolinas, com a sua letrinha cuidada e miudinha, a fazer lembrar a escola primária.

Abriu uma das gavetas e de lá retirou um pequeno embrulho, com um laço dourado.

- Oh, dona Palmira… então para que se deu a este trabalho ? Então…

Ela franziu os olhos, num olhar cúmplice.

- Vá… eu sei que gosta de presentes… e desta vez, não são chocolates…

Foi a vez dele recordar, com um sorriso nos lábios, os chocolates.

A dona Palmira sempre guardara, naqueles tempos longínquos, uma caixa de chocolates dentro da gaveta. Certo dia, ele vira-a a desembrulhar o doce e atrevera-se:

- Não me dá um chocolate desses ?

Mas ela não dera. Ao invés disso, lançara-lhe aquele olhar que ele tão bem conhecia e resmungara:

- Dou… mas só se souberes o nome do autor deste livro que estou aqui a ler…

Ele bem que tentou, espreitou, pôs-se a adivinhar… mas nada.

Baixou a cabeça, derrotado – Não sei…

Ela sorriu, matreira.

- Então é bom que tentes descobrir, meu malandro… ou então, nem te atrevas a voltar a pedir-me os meus maravilhosos chocolates…

Quanto tempo se passara? Trinta e muitos anos…
Emocionado, abriu o laço dourado e retirou o papel de embrulho. No seu interior, dois objectos.

Não conseguiu evitar o aperto da garganta, enquanto voltava a contemplar aquela letra torta – a sua – da requisição nº 3256, de 14 de Agosto de 1971, que segurava nas mãos. Por baixo, uma cópia do exemplar que ele requisitara nesse dia, quando finalmente descobrira o autor do livro que a dona Palmira devorava, todas as tardes daquele mês de Agosto.

“A ilha misteriosa” , de Júlio Verne.

Um sabor estranho invadiu-lhe o paladar. Quase quarenta anos depois, voltou a saborear a memória daquele chocolate, perante o olhar ternurento da bibliotecária.

Ainda lhe quis agradecer, mas o nó da garganta não consentiu.

Ela compreendeu… e abraçou-o de novo."


Muito obrigada, Entremares!
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27 comentários :

On 22 de junho de 2009 às 13:25 , Jorge Pinheiro disse...

Absolutamente espectaculares. Verdadeiramente religioso, como diz. Adoro estes espaços de recolhimento. Porventura faltará aqui a Bilblioteca do Convento de Mafra, perto de Lisboa, criada por D. João V. Já agora está longe de ser líquido que foi JC o incendiário da Biblioteca de Alexandria. Parece que o fogo definitivo (porque houve vários) foi já no séc. I dC.

 
On 22 de junho de 2009 às 14:45 , http://saia-justa-georgia.blogspot.com/ disse...

É um verdadeiro Templo tudo isso, Maria Augusta.

Eu me lembro que quando a minha escola levava a turma para um dia na biblioteca eu nao queria sair de lá.

Quando maior e numa outra escola me lembro que recebi um certificado por ter sido a única aluna que tinha lido a biblioteca toda nos 4 anos de curso.

É claro que a biblioteca era pequena; nada comparada a essas que você nos trouxe hoje.

Psiu, vou procurar um livro para ler.

Te desejo uma linda semana

Um beijo grande

 
On 22 de junho de 2009 às 16:35 , Lino disse...

Belíssimos os prédios, Maria Augusta.Mas o que eles contêm de saber é inimaginável. Como adoro livros, sou capaz de me perder em uma dessas bibliotecas, pela beleza da arquitetura, mas muito mais pelo que ela tem, os livros.

 
On 22 de junho de 2009 às 16:35 , Lino disse...

Belíssimos os prédios, Maria Augusta.Mas o que eles contêm de saber é inimaginável. Como adoro livros, sou capaz de me perder em uma dessas bibliotecas, pela beleza da arquitetura, mas muito mais pelo que ela tem, os livros.

 
On 22 de junho de 2009 às 17:27 , Anônimo disse...

Bibliotecas são catedrais do saber, mesmo! Uma em Barcelona, no Museu do Tapis é espetacular, também!
Parabéns pelo post!

 
On 22 de junho de 2009 às 18:35 , Elma Carneiro disse...

Maria Augusta
São realmente "templos do saber".
Algumas verdadeiras obras de arte, um luxo.
Não tinha visto ainda essas bibliotecas.
Obrigada por mostrá-las.
Gostaria mesmo de saber mais sobre a Biblioteca de Alexandria.
Muitos fatos históricos ficaram sem registro devido aos incendios sucessivos qua a destruiu, infelizmente.
A humanidade perdeu muito com isso.
Lindíssimas imagens.
Beijos

 
On 22 de junho de 2009 às 20:50 , Marco Antônio disse...

Sinceramente, algumas bibliotecas são curiosas porque acabam sendo mais interessantes que os próprios livros.
A Lu adora a biblioteca de Dublin e a Mário de Andrade aqui de SP.
Grande abraço

 
On 23 de junho de 2009 às 02:14 , Anônimo disse...

Adorei o post Maria Augusta, fiquei eu aqui a namorar essas fotos com um misto de saudade de algumas delas que eu adoro, mas senti falta de outras, claro. Sou ratinha de biblioteca e sempre que visito um país ou uma cidade faço questão de ir até uma delas.
Conheci uma num casarão, certa vez, pela qual me apaixonei, havia um porão que era onde aconteciam os saraus. Era lindissima... Pena não ter nenhuma foto para mostrar a você.

E quanto a Biblioteca de Alexandria, o que eu li sobre elas é que Júlio César a queimou acidentalmente quando colocou fogo em seus próprios navios para frustrar a tentativa de Achillas de limitar a sua capacidade de comunicação por via marítima. Louco como de costume.

Adorei seu post e a viagem
Bjs

 
On 23 de junho de 2009 às 08:32 , Maria Augusta disse...

Jorge, achei uma foto da biblioteca de Lisboa que você citou e coloquei no diaporama. Ouvi falar Julio César queimou a biblioteca de Alexandria "por acidente", e que foi um primeiro incêndio na série que ela sofreu até desaparecer.
Abraços.

Georgia, quando estava na escola eu também era uma "rata de biblioteca" rs. Mas como na sua escola, ela era pequena, mas eu devorava tudo.
Beijos.

Lino, estas bibliotecas tão belas oferecem um duplo prazer, não é mesmo?
Um abração.

Eduardo, tem razão, as catedrais são templos ao espírito de Deus, as bibliotecas são templos do espírito humano. Pena que não achei na Internet uma foto da biblioteca do museu de Tapis para colocar.
Abraços.

Elma, elas são impressionantes de tanta beleza...e o conteudo então, mas isto é assunto para outro post. Quanto à de Alexandria, imagino o que o mundo perdeu com seu desaparecimento.
Um grande beijo.

Marco, é um aspecto destas bibliotecas em prédios imponentes, a competição entre "a embalagem" e o "conteudo".
Frequentei muito a Biblioteca Mario de Andrade mas não tenho fotos dela, é uma pena.
Abraços.

Lunna, que legal que você conhece várias destas, realmente a de Dublin parece belíssima. Obrigada pela precisão sobre a ação de Julio Cesar no incêndio da biblioteca de Alexandria e parabéns pelo novo blog, ele já está na sidebar.
Beijos.

 
On 23 de junho de 2009 às 10:49 , meire disse...

Alem de um colirio para os olhos, eu adoro o cheiro dos livros, principalmente os antigos.

Bjs

 
On 23 de junho de 2009 às 16:04 , Ví Leardi disse...

...verdadeiros museus...horas e muitos dias são necessárias/os para se saborear tanta maravilha...visitas obrigátórias à cada viagem...O Real Gabinete de Leitura,no Rio é literalmente de tirar o fôlego....O Monastere de Wiblingen na Alemanha quando fui pela primeira vez....me causou o mesmo efeito de quando vi a Praça São Marcos em Veneza...já era noite e todas as luzes brilhavam...só mesmo chorando! Lindo post... bjs

 
On 23 de junho de 2009 às 17:53 , sonia a. mascaro disse...

Que maravilha de Bibliotecas, Maria Augusta! Livros são a minha grande paixão. Gosto muito do perfume de livros novos, dos que acabaram de sair do forno...

Li um livro bem interessante, chamado A Biblioteca Desaparecida, Histórias da Biblioteca de Alexandria, de autoria do italiano Luciano Canfora.
Bjs.

 
On 23 de junho de 2009 às 18:09 , sonia a. mascaro disse...

Voltei Maria Augusta, para passar um link para você - já que o tema hoje é livros - da entrevista com José Mindlin, e seu conjunto primoroso
de 30.000 livros raros. As fotos foram tiradas pelo meu cunhado, Cristiano Mascaro. Link
AQUI
Bjs.

 
On 23 de junho de 2009 às 20:09 , João Menéres disse...

ESTOU MARAVILHADO COM 16, DADO QUE DUAS JÁ CONHECIA!

Teu post é uma maravilha. Obrigado.

Um beijo.

 
On 23 de junho de 2009 às 22:26 , Aninha Pontes disse...

Coisa fantástica. Apesar de que o saber pode estar em pequenos e simples cômodos, que não diminui a sua importância, não é mesmo?
Um livro é um excelente companheiro, e acho que ainda não me adaptei às leituras eletrônicas. Continuo preferindo manusear o livro.
Mas a gente é sempre conservador, acaba se acostumando.
Lindo seu post.
Um beijo

 
On 23 de junho de 2009 às 23:23 , jugioli disse...

Lindo post, um tema apaixonante.

@dis-cursos

 
On 24 de junho de 2009 às 03:37 , Alexandre Kovacs disse...

A postagem mais linda que você já criou! Sem palavras...

 
On 24 de junho de 2009 às 09:28 , Maria Augusta disse...

Meire, os livros antigos tem um charme todo especial, né?
Um beijão.

Vi, estas bibliotecas são duplamante emocionantes, realmente muito tempo é necessário para curti-las como se deve. Que legal que você conhece o Mosteiro de Wiblingen, dizem que é maravilhoso.
Um grande beijo.

João, dá vontade de conhecer todas de perto, não é mesmo?
Um abração.

Aninha, também gosto muito de manusear os livros, mesmo para escrever gosto de primeiro fazê-lo no papel, e depois passar para o computador. E você tem razão, uma biblioteca é sempre um templo, mesmo que esteja situada numa pequena sala. E achei muito legal a campanha que você fez para equipar a biblioteca da escola do Erickinho.
Um beijão.

Ju, obrigada pela visita, estava com saudades!
Um grande beijo.

Kovacs, como os livros são teu domínio, entendo porque você gostou tanto deste post rs.
Um grande abraço.

 
On 24 de junho de 2009 às 11:09 , entremares disse...

Existe algum local mais tranquilo que uma biblioteca ?
Bem… se excluirmos as igrejas vazias ou os mosteiros abandonados, é claro.

Pois… não, claro que não existe.
Apesar de que, naquele belo sábado de manhã, a excepção iria confirmar a regra de que as bibliotecas são locais silenciosos, de estudo e – porque não? – até inspiração. E isto tudo porque um filho da terra, o conhecidíssimo autor de romances históricos Luís Vilas Novas iria ali lançar a sua última obra, com direito a sessão de autógrafos, palestra e cocktail promovido pela sociedade portuguesa de autores. Enfim, uma cerimónia a que a pequena vila do Alandroal, escondida no Alentejo seco e quente de Agosto, não estava propriamente habituada.
Agosto, no Alentejo sempre foi sinónimo de três coisas; Calor – sempre muito… e muito seco, céu azul vivo - daquele tom que fere a vista de luz, reflectido na cal das paredes - e finalmente… as ruas desertas, na sagrada interrupção da sesta.
O Alandroal podia passar despercebido no anonimato das urbes turísticas, sem monumentos de primeira grandeza ou eventos de abrangência nacional. Mas, naquele sábado de Maio de 2009, um ilustre filho da terra decidira regressar a casa e honrar as suas origens, através daquele pequeno gesto simbólico – lançar um livro.
Luís Vilas Novas, o autor, era uma daqueles característicos contadores de histórias, como tantos outros alentejanos, que havia trocado as tertúlias de café e os jogos de dominó pelas artes da escrita, enveredando por uma carreira de sucesso que já contava com mais de doze títulos, versando os romances históricos – a sua área predilecta.
“ A cruzada secreta “ era precisamente o seu último romance; uma história de aventura e mistério, retratando a odisseia de três cavaleiros cruzados, numa missão secreta a pedido de Roma, para tentar sequestrar Saladino, o todo-poderoso sultão do Egipto, nas vésperas da queda de Jerusalém.
A biblioteca da vila, apesar de pequena, continuava acolhedora, como ele ainda recordava. Ainda pouco passava das dez da manhã quando o escritor voltou a percorrer o corredor branco, o pórtico de pedra que separava a recepção dos arquivos, rumo ao salão de leitura. A cerimónia só teria inicio ao meio-dia e isso dava-lhe tempo suficiente para poder, tranquilamente… matar saudades.
O salão de leitura não mudara nada, ao longo de todos aqueles anos – as mesmas estantes de madeira, com portas de vidro, a escada ao fundo para aceder ao arquivo antigo, propositadamente dissimulado nas estantes mais altas, as mesmas mesas de carvalho escuro, já com evidentes sinais da passagem dos anos… mas mesmo assim, ainda sedutoras.
Os olhos fixaram-se numa mesa em especial, junto de uma das janelas. Aquele era o “seu” lugar, o seu recanto de estimação – ali vivera as primeiras aventuras, saboreando as páginas com sabor a piratas, a contrabandistas, a heróis da revolução, a romances de cavalaria, a aventuras no espaço…

- O senhor doutor está matando saudades?
Voltou-se, sobressaltado. Aquela voz…
- Dona Palmira ? … É mesmo a senhora ?
Abraçaram-se efusivamente.
A biblioteca não seria a mesma … sem a dona Palmira, a eterna funcionária que ainda agora, já com a velhice bem estampada no rosto, resistia ao avançar dos anos e aparentemente, ainda tomava conta dos destinos de todos aqueles livros.
- O senhor doutor veio confirmar se já está tudo pronto ? – quis saber, o mesmo sorriso meigo que ele ainda recordava.
- Oh, dona Palmira, por favor… não me chame isso, que até me sinto mal… para si, eu serei sempre o Luís… só Luís. Deixe lá o doutor dentro da gaveta, por favor…
Ela aquiesceu, agradecida.
- Saudades ? – e ao mesmo tempo, ia apontando para a mesa onde o escritor estivera sentado e de onde se levantara em sobressalto.
Ele acenou em silêncio, numa concordância que dispensava palavras.
(continua...)

 
On 24 de junho de 2009 às 11:11 , entremares disse...

(...continuação)

Por momentos, assim permaneceram, os olhares perdidos em tempos passados, recordando as colecções de instantes que, sem o percebermos, vão moldando a maneira como vemos as coisas…
- Tenho uma surpresa para si… - lá avançou a dona Palmira, após um longo silêncio – e queria dar-lha antes… de começar toda a confusão da cerimónia…
- Uma surpresa ? Ora essa…
Ela afastou-se, dirigindo-se até à mesa cinzenta metálica, onde ainda guardava as fichas de cartão com a identificação dos livros, dos armários, das prateleiras. É claro que também ali existia o computador e que – um pouco a custo, é certo – lá aprendera a trabalhar com o programa que geria a biblioteca. Mas não havia computador que substituísse o prazer de manusear com as mãos as pequenas cartolinas, com a sua letrinha cuidada e miudinha, a fazer lembrar a escola primária.
Abriu uma das gavetas e de lá retirou um pequeno embrulho, com um laço dourado.
- Oh, dona Palmira… então para que se deu a este trabalho ? Então…
Ela franziu os olhos, num olhar cúmplice.
- Vá… eu sei que gosta de presentes… e desta vez, não são chocolates…
Foi a vez dele recordar, com um sorriso nos lábios, os chocolates.
A dona Palmira sempre guardara, naqueles tempos longínquos, uma caixa de chocolates dentro da gaveta. Certo dia, ele vira-a a desembrulhar o doce e atrevera-se:
- Não me dá um chocolate desses ?
Mas ela não dera. Ao invés disso, lançara-lhe aquele olhar que ele tão bem conhecia e resmungara:
- Dou… mas só se souberes o nome do autor deste livro que estou aqui a ler…
Ele bem que tentou, espreitou, pôs-se a adivinhar… mas nada.
Baixou a cabeça, derrotado – Não sei…
Ela sorriu, matreira.
- Então é bom que tentes descobrir, meu malandro… ou então, nem te atrevas a voltar a pedir-me os meus maravilhosos chocolates…

Quanto tempo se passara? Trinta e muitos anos…
Emocionado, abriu o laço dourado e retirou o papel de embrulho. No seu interior, dois objectos.

Não conseguiu evitar o aperto da garganta, enquanto voltava a contemplar aquela letra torta – a sua – da requisição nº 3256, de 14 de Agosto de 1971, que segurava nas mãos. Por baixo, uma cópia do exemplar que ele requisitara nesse dia, quando finalmente descobrira o autor do livro que a dona Palmira devorava, todas as tardes daquele mês de Agosto.
“A ilha misteriosa” , de Júlio Verne.
Um sabor estranho invadiu-lhe o paladar. Quase quarenta anos depois, voltou a saborear a memória daquele chocolate, perante o olhar ternurento da bibliotecária.
Ainda lhe quis agradecer, mas o nó da garganta não consentiu.
Ela compreendeu… e abraçou-o de novo.

( Perdoe a extensão do comentário, mas não resisti...)

Boa continuação.

 
On 24 de junho de 2009 às 13:49 , Jorge Pinheiro disse...

Sim, um dos incêndios foi por causa da frota naval que JC mandou incendiar. A Biblioteca foi um dano colateral. O definitivo foi mais tarde.

 
On 24 de junho de 2009 às 16:28 , Selena Sartorelo disse...

Maria Augusta, obrigada pela viagem
maravilhosa que você nos proporcionou...Há algumas semanas atrás estava numa livraria com minha filha e as palavras dela foram "Mamãe imagina se agente morasse aqui, que delícia..(nesse momento ela apontava para os livros como uma criança que olha para uma vitrine de doces) Acho até que já contei essa história, mas aqui ela cabe tão bem que perdoe-me pela repetição - Então ela apontava cada livro e dizia eufórica) Bom agora vou ler esse, depois aquele, imagina mamãe!
E foi assim que eu me senti passeando por aqui.
Parabéns.
E o José Midlin cá prá nós (é um dos meus hérois rsrsr. tenho poucos mas esse é especial)

beijos,

 
On 24 de junho de 2009 às 22:37 , Maria Augusta disse...

Gente, como está emocionante ta caixa de comentários deste post.

Entremares, que conto maravilhoso, expressa bem esta ligação que nos une aos livros, que nos permitem nossas primeiras viagens, nas quais guiados pelas palavras dos autores criamos em nossa mente os rostos dos personagens e o cenário como em um filme.
Muito obrigada por deixar aqui este tesouro, adorei!
Um grande abraço.

Jorge, que efeito colateral mais trágico para a humanidade Julio César provocou...
Abraços.

Selena, que bom saber que as crianças ainda se apaixonam pelos livros e que você se sentiu como elas vendo estas bibliotecas...e o José Mindlin doou uma grande parte de sua biblioteca à USP!
Beijos e obrigada pela visita.

 
On 25 de junho de 2009 às 04:36 , Luma Rosa disse...

Faltou a Biblioteca Nacional do Rio! (rs*). Fico impressionada com os tetos! Se saímos dos livros e divagamos, olhamos para o teto, babaú, a atenção é logo desviada!
Eu me referi a Biblioteca Nacional, porque foi a última grande biblioteca que adentrei, fotografei e postei no bloguinho! Veja uma das fotinhas: http://1.bp.blogspot.com/_vc1VEWPuSmU/SAaXn3YZalI/AAAAAAAACgw/qWhyx162Wyg/s1600/imagem1.bmp
Engraçado que tão qual você, comecei o post pedindo silêncio!!
As imagens estão lindas e engraçado haver bibliotecas sem lugar para sentar, não? Gosto nas bibliotecas antigas, das lamparinas das mesas. Beijus

 
On 25 de junho de 2009 às 18:21 , Maria Augusta disse...

Luma, é verdade que a beleza do lugar pode prejudicar a concentração sobre os livros. Acho que todas tem lugar para sentar (rs), é que as fotos às vezes não mostram as salas de leitura. Coloquei no diaporama tua foto da Biblioteca Nacional do Rio, merci!
Beijos.

 
On 30 de junho de 2009 às 09:20 , Fatima Cristina disse...

Oi Maria Augusta,

Tanto tempo sem vir aqui e tanta novidade!

Parabéns pelo lindo post e mais ainda pelos comentários tão enriquecedores!

Seus posts nos convidam ao esmero nos comentários. É contagiante! ;)

A Biblioteca/Museu de Admont, na Áustria, eu tive a oportunidade de conhecer. É realmente maravilhosa. Também gosto muito da Biblioteca do Museu Mritânico em Londres e da do meu querido e saudoso Imperial College. Mas, na verdade, não consigo me concentrar muito na leitura quando estou dentro de bibliotecas. Fico ansiosa para encontrar livros e mais livros de meu interesse, e o tempo é sempre curto. Mais tarde, em casa, no meu sofá, ou na rede, me entrego então à leitura do tesouro encontrado!

Beijos!

 
On 30 de junho de 2009 às 09:21 , Fatima Cristina disse...

Ooops...
Britânico!
...